22 fevereiro 2014

Presente de Aniversário

Era o aniversário de um grande amigo. Amigo do peito mesmo, daqueles que se conta nos dedos.
E eu tinha que levar um presente.
Queria dar algo significativo, para demonstrar meus sentimentos. Mas não bastava sentar junto numa mesa de bar, dar um abraço e dizer "meus parabéns!". Não, eu tinha que marcar a data. Tinha que dar um presente. Mas não um presente qualquer de farmácia. Não podia ser um perfume, ou um conjunto de copos de cerveja... Muito clichê. Daria a impressão de que estou dando um presente apenas por obrigação, e que por pura conveniência pessoal nem me dei ao trabalho de pensar com carinho em qual o melhor objeto a presentear. Meu amigo não merecia isso. Eu queria que ele se sentisse especial, que percebesse e valorizasse o meu verdadeiro afeto. 
Sei que durou anos e nunca fui assim tão sincero, mas chega uma fase da vida da gente que a gente passa a considerar de fato e conscientemente aquelas pessoas que nos são importantes. E era chegada a minha vez. Eu queria demonstrar. E me pus a pensar em qual seria o melhor presente para o meu amigo.
Já sabido que abraço não, e que perfume também não, e tampouco copos de cerveja, comecei a imaginar quais presentes pudessem agregar valor maior à vida do meu amigo. Pensei em livros, para agregar conhecimento. Mas então me dei conta de que por maior que fosse o conhecimento agregado por um livro, geralmente são poucas as passagens que "ficam". E ainda o tal conhecimento seria usado, quando muito, uma vez lá ou outra na vida. Não. Eu precisava encontrar algo que fosse mais útil, mais cotidiano, uma utilidade mais imediata e presente.
Pensei em um show da banda de rock favorita. Uma memória que se tornaria eterna. Mas aí pensei que embora memórias sejam algo legal de se cultivar, bem, não agregam muito de prático à vida. E ele provavelmente já iria nesse show mesmo. E portanto, "eu" não teria feito tanta diferença assim em sua vida com um presente desses.
Pensei que tinha que ser algo útil, que durasse muito, e cogitei um carro. Um carro é puta útil! Ele vai adorar, e vai durar muito tempo. Ok, é caro... mas poxa, é meu amigão! Ele merece. Mas aí pensei que se eu desse um carro, poderia estar causando um mal, pois no ano que vem haveria outro aniversário e o que eu-endividado daria então? Sem contar que ele poderia se sentir ofendido, pensando que julgo que ele não teria condições de trocar de carro sozinho, caso quisesse... Não quero correr esse risco de perder uma amizade tão importante por besteira. E ademais, é um aniversário afinal, para comemorar a passagem de um único ano; e portanto eu precisava encontrar um presente de utilidade de um ano. O preço do presente pouco significa.
Pensei então que eu queria esse amigo pra sempre comigo. E que a vida é feita de passo em passo. Precisamos ter saúde para que o ano que vem aconteça. Saúde. Algo que fosse útil. Com utilidade imediata, que durasse este ano. Que agregasse à vida do meu amigo. Que ele percebesse o quanto eu o valorizo e admiro. Que lembrasse de mim até o próximo ano, para novamente comemorarmos juntos a nossa amizade.
Dei um fio-dental.
E depois de tudo isso, nem mesmo um "muito obrigado". É foda. Nunca faça nada com expectativa de reconhecimento. 

-- João Otero - 22-fev-2014 --

21 fevereiro 2014

Crônicas Tecnológicas I

E ali pela segunda década dos anos dois mil inventaram o carro que dava licença.
Perceberam que às vezes, quando iam estacionar os carros, o espaço disponível "quase" dava. Pensavam "se aquele carro ali atrás tivesse estacionado um pouquinho mais pra trás e aquele outro carro ali à frente tivesse estacionado um pouquinho mais adiante...". 

O princípio era o seguinte: o motorista que queria estacionar "pedia licença" aos carros da frente e de trás, que gentilmente religavam seus motores automaticamente e mesmo na ausência de seus donos andavam um pouquinho, caso houvesse espaço, para fazer uma vaga extra ao motorista que tentava estacionar.

Ideia genial! E tudo andava bem - fora o trânsito de São Paulo, que nunca até hoje ficou "bem". Mas ao menos havia umas vagas extras para estacionamento na rua... 

Até que um dia surgiu o primeiro caso de extraviamento espontâneo de automóveis - também apelidado de Alzheimer dos Carros - e que mais tarde, ao tornar-se mais corriqueiro e fazer com que alguns carros ficassem sem combustível para voltar para casa, obrigou as montadoras a um recall para conserto do bug. 

O bug era o seguinte: em certas ocasiões muito peculiares ocorria uma sequência de pedidos de licença para o mesmo carro; e acaso os carros de trás (ou da frente) tivessem desocupado sua vaga, liberando espaço para que o carro pudesse andar, o automóvel educadamente ia cedendo o seu lugar um pouquinho e um pouquinho mais, várias vezes seguidas. 

Ocorre que um dia o dono do tal automóvel educado não encontrou o carro no lugar que o tinha deixado e chamou a polícia. Foi aquela confusão... Até descobrirem seu carro gentilmente esperando à oitenta metros de distância. 

As montadoras corrigiram o problema rapidamente. Fizeram os carros aprenderem a negociar. O princípio era o seguinte: os carros ainda cederiam lugar, mas contanto que entendessem que não haviam mudado em muito a sua própria posição, de modo que seu dono não percebesse nenhuma mudança significativa a ponto de precisar chamar a polícia. Os carros passaram, de certa forma, a aprender a dizer "por favor; obrigado", mas também às vezes a dizer "desculpa, mas desta vez não". 

E tudo foi bem por um tempo - mas menos tempo que o que demorou para o primeiro recall, entretanto - até que um segundo recall foi necessário.

O negócio é que os carros desenvolveram por conta própria um sistema de créditos sociais. Funcionava assim, um carro dizendo ao outro, que respondia:
- Bom dia, você pode me dar licença?
- Desculpe, mas desta vez não...
- Mas só mais meio metro?
- Não dá, já andei bastante; meu dono não vai conseguir me encontrar depois...

E nesse ponto o carro solicitante desconfiava entre uma de duas coisas: ou era muita falta de cooperação e bom senso, ou então era apenas uma desculpinha por pura preguiça. E na ocasião em que o favor deveria ser retribuído, lembrava então da situação ocorrida e negava o pedido por puro remorso. 

Esse comportamento entre os carros escalou rapidamente, e os carros passaram até a discutir no meio da rua, veja só! Foi aquela lambança; comportamento de gente baixa mesmo... Mas enfim, o segundo recall foi feito e o novo bug foi consertado.

A solução encontrada foi fazer com que os carros reprimissem seus sentimentos antes que se transformassem em briga de tapas e socos.

Tudo voltou ao normal e ocorreu bem por um certo tempo. ...Até o primeiro suicídio. 

Os carros passaram a se sentir angustiados, ansiosos, deprimidos. Certo dia, um deles propositalmente atravessou o sinal vermelho e se matou. Em pouco tempo a ideia espalhou-se como um vírus, e não durou muito para, a despeito de todos os aparatos de segurança obrigatórios em todos os carros, o primeiro ser humano acabar morrendo também.

Mas não houve tempo para recall desta vez. Foi tudo muito rápido... Automóveis que estavam apenas passeando felizes da vida sentiram-se ofendidos com os encontrões e incomodações provocados por aqueles menos afortunados. Por sua feita, os desafortunados carros deprimidos em face de uma inveja silenciosa deprimiam-se ainda mais e alguns tornaram-se agressivos. Um grupo de carros extremistas organizou-se. Os ânimos se exaltaram. Em questão de dias ecolodiu a primeira guerra civil dos automóveis, como ficou conhecida nos anais da história.

Dinâmicas emergentes. Dinâmicas emergentes... Nunca foi fácil antecipar bugs.


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-- João Otero - 21-fev-2014 --

14 fevereiro 2014

Oração

vaimesmo com a aflição que te perdura
mas deixa umas pegadas pra saber que veio
segue duma vez o teu insano anseio
e deixa que a aflição a vida cura
hás de encontrar dormente a face clara, 
na candura doce do teu seio
pois se te pára a vida agora triste e escura,
é que ela se guarda, ainda é futura
a vida pela qual teu peito é cheio
vai, e não te desiludas, segue firme a crença
saibas que tua chama acesa eterna dura
segue tua senda, põe-te com paciência
à prava do amor e sua fartura


-- João Otero - 11-fev-14 --