21 fevereiro 2014

Crônicas Tecnológicas I

E ali pela segunda década dos anos dois mil inventaram o carro que dava licença.
Perceberam que às vezes, quando iam estacionar os carros, o espaço disponível "quase" dava. Pensavam "se aquele carro ali atrás tivesse estacionado um pouquinho mais pra trás e aquele outro carro ali à frente tivesse estacionado um pouquinho mais adiante...". 

O princípio era o seguinte: o motorista que queria estacionar "pedia licença" aos carros da frente e de trás, que gentilmente religavam seus motores automaticamente e mesmo na ausência de seus donos andavam um pouquinho, caso houvesse espaço, para fazer uma vaga extra ao motorista que tentava estacionar.

Ideia genial! E tudo andava bem - fora o trânsito de São Paulo, que nunca até hoje ficou "bem". Mas ao menos havia umas vagas extras para estacionamento na rua... 

Até que um dia surgiu o primeiro caso de extraviamento espontâneo de automóveis - também apelidado de Alzheimer dos Carros - e que mais tarde, ao tornar-se mais corriqueiro e fazer com que alguns carros ficassem sem combustível para voltar para casa, obrigou as montadoras a um recall para conserto do bug. 

O bug era o seguinte: em certas ocasiões muito peculiares ocorria uma sequência de pedidos de licença para o mesmo carro; e acaso os carros de trás (ou da frente) tivessem desocupado sua vaga, liberando espaço para que o carro pudesse andar, o automóvel educadamente ia cedendo o seu lugar um pouquinho e um pouquinho mais, várias vezes seguidas. 

Ocorre que um dia o dono do tal automóvel educado não encontrou o carro no lugar que o tinha deixado e chamou a polícia. Foi aquela confusão... Até descobrirem seu carro gentilmente esperando à oitenta metros de distância. 

As montadoras corrigiram o problema rapidamente. Fizeram os carros aprenderem a negociar. O princípio era o seguinte: os carros ainda cederiam lugar, mas contanto que entendessem que não haviam mudado em muito a sua própria posição, de modo que seu dono não percebesse nenhuma mudança significativa a ponto de precisar chamar a polícia. Os carros passaram, de certa forma, a aprender a dizer "por favor; obrigado", mas também às vezes a dizer "desculpa, mas desta vez não". 

E tudo foi bem por um tempo - mas menos tempo que o que demorou para o primeiro recall, entretanto - até que um segundo recall foi necessário.

O negócio é que os carros desenvolveram por conta própria um sistema de créditos sociais. Funcionava assim, um carro dizendo ao outro, que respondia:
- Bom dia, você pode me dar licença?
- Desculpe, mas desta vez não...
- Mas só mais meio metro?
- Não dá, já andei bastante; meu dono não vai conseguir me encontrar depois...

E nesse ponto o carro solicitante desconfiava entre uma de duas coisas: ou era muita falta de cooperação e bom senso, ou então era apenas uma desculpinha por pura preguiça. E na ocasião em que o favor deveria ser retribuído, lembrava então da situação ocorrida e negava o pedido por puro remorso. 

Esse comportamento entre os carros escalou rapidamente, e os carros passaram até a discutir no meio da rua, veja só! Foi aquela lambança; comportamento de gente baixa mesmo... Mas enfim, o segundo recall foi feito e o novo bug foi consertado.

A solução encontrada foi fazer com que os carros reprimissem seus sentimentos antes que se transformassem em briga de tapas e socos.

Tudo voltou ao normal e ocorreu bem por um certo tempo. ...Até o primeiro suicídio. 

Os carros passaram a se sentir angustiados, ansiosos, deprimidos. Certo dia, um deles propositalmente atravessou o sinal vermelho e se matou. Em pouco tempo a ideia espalhou-se como um vírus, e não durou muito para, a despeito de todos os aparatos de segurança obrigatórios em todos os carros, o primeiro ser humano acabar morrendo também.

Mas não houve tempo para recall desta vez. Foi tudo muito rápido... Automóveis que estavam apenas passeando felizes da vida sentiram-se ofendidos com os encontrões e incomodações provocados por aqueles menos afortunados. Por sua feita, os desafortunados carros deprimidos em face de uma inveja silenciosa deprimiam-se ainda mais e alguns tornaram-se agressivos. Um grupo de carros extremistas organizou-se. Os ânimos se exaltaram. Em questão de dias ecolodiu a primeira guerra civil dos automóveis, como ficou conhecida nos anais da história.

Dinâmicas emergentes. Dinâmicas emergentes... Nunca foi fácil antecipar bugs.


Veja outras Crônicas Tecnológicas e outros textos.

-- João Otero - 21-fev-2014 --