27 março 2014

Crônicas Tecnológicas II


Felipe e Pedro eram irmãos. Certo dia, Pedro sofreu um grave acidente e foi levado às pressas ao hospital. Por sorte, seu sistema de backups não foi afetado e a equipe médica pôde reconstituir o modelo lógico de seu cérebro átomo a átomo, tal qual momentos antes do acidente. 

Uma pequena parte do cérebro foi substituída por uma prótese artificial, mas que obedecia às mesmas funções lógicas, e que foi resetada ao mesmo estado funcional anterior do cérebro então danificado.  Avanço na medicina - era a primeira vez que tal procedimento tinha sido concluído com êxito absoluto!

Testes confirmaram que o funcionamento mental de Pedro não foi afetado em parte alguma. Não houve perda motora, não houve perda alguma de memória, não houve influência no seu funcionamento lógico - ou seja, nem mesmo a introdução de novas memórias fictícias, ou uma influência em suas percepções sensoriais, e nem mesmo alteração alguma na forma como Pedro sentia suas emoções.

Em suma, Pedro era o mesmíssimo mesmo Pedro de sempre.

Anos adiante, Pedro sofreu novamente da mesma má sorte. Desta vez um pedaço bem maior de seu cérebro foi danificado. Morte cerebral instantânea. 

Mas por um pouco de boa sorte (que tudo na vida vem de um jeito equilibrado), a mesma equipe médica, melhor do mundo naquela especialidade, conseguiu acessar os dados de backup de Pedro junto ao seu exame de ressonância mais recente e foi capaz de reconstruir artificialmente um cérebro inteiro, novinho em folha - que funcionava tal qual o cérebro carbônico anterior. 

O procedimento cirúrgico foi rápido e Pedro voltou para casa normalmente ao final do dia, assim como qualquer um desses ressucitados que abundam cotidianamente pelos hospitais do mundo todo…

Assim como da primeira vez, testes confirmaram que os traços de memória, personalidade, caráter, regras de decisão, empatia e emoção continuavam os mesmos do Pedro original. Mas desta vez, o cérebro de Pedro era 100% máquina. Entretando, pensava como Pedro, tinha as memórias de Pedro, se emocionava como Pedro, comandava inclusive o corpo de Pedro. Ou seja, “era”, de fato, ainda, Pedro.

Pedro foi um desses casos raríssimos que participou de forma crucial em 2 dos avanços científicos mais significativos da ciência humana.

Com o novo cérebro artificial, Pedro tornou-se o primeiro humano a ultrapassar o ducentésimo aniversário (visto que os demais órgãos sempre foram muito mais fáceis de manter e consertar, já há muitas décadas). 

Através de Pedro, psicólogos e pesquisadores de todo o mundo puderam analisar efeitos emocionais até então desconhecidos na história do homem: Pedro viu mais gerações de familiares partirem desta para melhor do que qualquer outro humano vivo até então.

O cérebro de Pedro tornou-se tão importante para as pesquisas que de fato foi replicado 214 vezes, sob encomenda e com seu pleno aceite e autorização, e empregado como voluntário em institutos de pesquisa ao redor do mundo, contido em corpos artificiais. 

A partir do momento de sua concepção, tais Pedros passaram a se comportar com pequenas variações e distinções entre si, razão da influência de diferentes dados sensoriais e experiências de vida às quais foram submetidos. Mas até o momento de sua concepção, todos os 214 Pedros possuíam a mesma memória de 200 e poucos anos. Todos se consideravam vivos à muito tempo, lembravam das mesmas coisas, tinham os mesmos preceitos morais, os mesmos laços afetivos. 

Era apenas como que instantaneamente pudessem tomar 214 caminhos simultâneos. Visitar 214 lugares diferentes ao mesmo tempo. Interagir com 214 pessoas em diferentes locais do mundo, na mesma hora. A partir de sua concepção, tornaram-se 214 vidas independentes. Mas todos eles com 200 e poucos anos de memória e experiências identicamente comuns entre eles.

A “mente” afinal, aprendeu-se enfim, não tem relação alguma com o corpo. Nem com o cérebro. Nem mesmo com o “ser” - levou algumas décadas, mas finalmente todos agora compreendiam! A mente é tão só um processo lógico, que pode “viver” e ser replicada em qualquer substrato que respeite as mesmas regras lógicas seguidas pela mente original - ou impostas pelo cérebro original.

De fato, recentemente os garotos do colégio Emmanuel lá de Jericoacoara (com a ajuda de seus personal bots, obviamente) replicaram 3 segundos das memória de Felipe numa cadeia de dominós no que possivelmente virá a se tornar a maior cadeia de dominós do mundo - ainda a ser confirmada pelo Guinness Book, que está verificando se de fato todos os dominós caíram.

Diz-se que Felipe-versão-dominó morreu feliz. Algumas pessoas ainda não conseguem aceitar esse conceito… - só um breve comentário.

Mas, veja, esse nem é o grande problema. O que tornou-se complicado mesmo foi concluir se Felipe, então irmão de Pedro, foi ou não a primeira pessoa do mundo a ter 215 irmãos. 

Ou se apenas os 214 Pedros-gêmeos é que tinham um único e mesmo irmão, Felipe - já que tecnicamente os Pedros-gêmeos não eram bem gêmeos, e sim a “mesma” pessoa, com múltiplas existências. 

Esse problema ainda é debate acirrado em mesas de bar até hoje, e abalou algumas estruturas sociais profundamente: foi aquele o dia em que o conceito de “irmandade” tornou-se unidirecional? Mas, e pode isso?!



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— João Otero - 27-mar-2014 —